Hoje em dia se fala muito em partos humanizados, feitos em casa, ensaiados e nada traumáticos para a mãe ou para o bebê. Mas, infelizmente, esse tipo de parto ainda é raro e históricos de violência no parto ainda fazem parte da vida de muitas mulheres na hora de se tornarem mães.
Uma prova disso é o relato que você está prestes a conferir. Como você vai ver, ele foi escrito por um estudante de medicina, que vivenciou tudo em um dia comum de residência; e que ficou tão abalado com as coisas que viu que resolveu não se calar.
O garota resolveu relatar para um dos blogs do Estadão aquilo que a obstetra tentou abafar naquele atendimento: toda a violência no parto da adolescente de apenas 16 anos, que estava dando à luz a primeira vez.
Mas, antes de você começar a ler é preciso saber, cara leitora, que a história relatada é revoltante. Se você for uma pessoa sensível, talvez seja melhor parar por aqui. É difícil saber que existem profissionais tão indignos como a protagonista desse relato atuando na saúde brasileira.
Sobre o texto em si, são necessárias algumas explicações. As palavras acompanhadas do símbolo “*” se tratam de explicações sobre alguns termos que foram feitas pelo blog, sob supervisão da médica.
Raquel* (que não se chama Raquel de verdade), tem 30 anos de idade, é estudante de medicina e só permitiu que esse relato fosse publicado pelo jornal se a identidade dela, do hospital e da obstetra fossem mantidas em sigilo. A profissional em questão é professora no curso de medicina e a aluna, obviamente, teme represálias.
Prepare-se para chocar com os relatos da violência no parto dessa adolescente:
“Menina de 16 anos, grávida pela primeira vez, chega à maternidade, com contrações ritmadas e sete centímetros de dilatação. Não se queixava de dores fortes, apenas desconforto e certo cansaço. Andamos pelos corredores, do lado de fora da sala do pré-parto, das 23h até meia-noite.
Tudo corria bem, eu fazia massagens na sua região lombar quando, de repente, a médica plantonista apareceu no local para atender outra paciente que estava na mesma sala, já que não há pré-parto individual. Ignorando o meu relato de que a paciente estava evoluindo super bem prescreveu ocitocina* (hormônio usado para estimular as contrações) diretamente no soro, sem uso de bomba de infusão, a correr, sem um controle preciso do número de gotas, apesar de a paciente e a mãe dela terem dito que não queriam.
“A obstetra aqui sou eu!”, disse.
A paciente começou a sentir contrações dolorosas, ficando impossibilitada de caminhar.
A obstetra mandou ela se deitar na cama, para novo exame de toque, dizendo “Ah, você está fazendo é fiasco!” e rompeu a bolsa da parturiente. Líquido claro. Os batimentos cardíacos do bebê estavam ótimos, eu captava com o sonar a cada dez minutos, preocupada com tanta ocitocina. Eu tentava argumentar com a obstetra: “Dra, ela estava com contrações efetivas, ritmadas.” Mas ouvi: “Agora são meia-noite e meia. Vamos acabar com isso já!” E repetiu a pérola: “Quem é a obstetra aqui? É tu?”
Bom, lá pelas duas da manhã, a paciente já estava com dilatação total, mas o bebê ainda estava alto. E a “Dra” tascou outro soro com ocitocina na moça, sob protestos da paciente, da mãe, que era sua acompanhante, e meus.
Na sequência levei uma super bronca porque deixei a paciente beber água.
Bom, quando o bebê desceu e estava quase nascendo, a doutora, com gestos rudes, fez a paciente levantar-se do leito e me pediu para levá-la para a sala de parto, a cerca de dez metros dali. Disse para eu me paramentar, porque seria eu que daria assistência àquele parto. Minha colega estagiária, também interna, fazia o acompanhamento dos batimentos cardíacos do bebê que estavam ótimos, em 140 por minuto, e posicionamos a paciente deitada, em litotomia. A cabeça do bebê vinha descendo lentamente, mas descia. Os batimentos do bebê continuavam excelentes. Mas a obstetra, impaciente, gritou para minha colega realizar manobra de Kristeller* (manobra proibida, por ser perigosa para mãe e bebê, que consiste na aplicação de pressão na parte superior do útero com o objetivo de facilitar a saída do bebê). Ela se negou e eu disse para ela que nós não realizávamos aquilo. A médica brigou conosco, xingou todo mundo e mandou a enfermeira subir na escadinha e fazer. A enfermeira quase montou na paciente, que berrava para que parassem. A menina dizia que doía muito e que não conseguia respirar.
“Cala a boca!”, gritou a obstetra. E subiu na paciente também.
Eu dizia que não tinha necessidade daquilo, que o bebê estava descendo. Foi um pandemônio. A obstetra se enfureceu, tirou-me de campo e fez episiotomia* (corte entre a vagina e o períneo da mulher, também abolido por muitos médicos humanizados, para “facilitar” a saída do bebê).
Minha colega auscultou novamente o bebê: os batimentos cardíacos estavam ótimos, 136 por minuto.
Não contente, a médica pediu para a enfermeira trazer o fórceps. Quando ela colocou, a paciente berrou de dor. E o corte, já enorme e feito contra a vontade de paciente, aumentou ainda mais, como um rasgo.
A médica puxou o bebê com o fórceps, desnecessariamente ao meu ver, porque o bebê descia, ainda que lentamente, era só ter paciência já que os batimentos cardíacos mostravam que tudo evoluía bem, não havia sofrimento fetal. Até o dorso do bebê estava à esquerda, como manda o figurino.
A médica olhou para mim, ao final e disse: “Você que ficou aí parada, sutura aqui a episiotomia!”. Levei mais de uma hora para suturar aquele corte.
Eu e minha colega anotamos tudo no prontuário. A “doutora” não gostou do nosso registro e “passou a limpo o prontuário”, fazendo nova folha de registro! E foi dormir.
Para completar ainda recebi bronca por “ter deixado a familiar entrar”. Quando retruquei dizendo que é lei federal, ouvi: “Mas eles não sabem!”
A minha paciente chorou e a mãe dela disse: “É assim mesmo, filha”. Eu disse que não, não era, que não precisava ser assim, horrível, enquanto suturava aquele corte profundo, enorme, que ia até quase a nádega da moça.
Quando solicitei à enfermagem gelo perineal, para reduzir o edema, elas disseram: “Só se a Dra. prescrever!” Daí me humilhei na frente da obstetra para conseguir que fosse colocada a compressa de gelo. Consegui, mas ouvi que tinha sido bom “para ela ver que pôr filho no mundo não é brincadeira!”
Daí eu entendi que ela fez tudo isso porque a moça tinha apenas 16 anos.
Também doeu ver que as pessoas não têm consciência de que isso é violência, mesmo depois de alertamos, eu e minha colega.
A mãe dela disse, no fim: “Olha, doutoras, eu não vou denunciar a médica porque a gente precisa dos médicos! A gente nunca deve fazer uma coisa dessas com quem cuida da gente!”
Foi de partir coração ouvir isso. A minha colega e eu choramos de raiva, de frustração, de tudo, no quarto dos internos. Esse foi o caso mais criminoso e horrível que eu assisti, o parto mais violento.”
Difícil saber que ainda existem pessoas que trabalham pela vida de outras pessoas com tanto desprezo, não acha?
Agora, falando em violências na hora do parto, não deixe de conferir ainda: 5 verdades sobre a cesárea que toda mulher deveria saber.
Fonte: Estadão